sábado, 17 de julho de 2010

Ilusão e desilusão… uma cidade de fantoches!

Numa tentativa de resposta à pergunta que diariamente se formula em relação ao estado do país, nada mais indicado do que a peça construída (A partir de O AVARENTO de MOLIÉRE) ‘O AVARENTO ou A última festa’ de José Maria Vieira Mendes. Esta comédia, escrita em 5 Actos?, oferece uma representação totalmente inovadora sem nunca se desviar da cidade e dos assuntos nela envolventes.
O pano sobe lentamente, mas logo deixa transparecer que a cidade está abandonada ou simplesmente desordenada. Da esquerda à direita, uma secretária, computadores agrupados, telas com imagens em movimento, uma campa, uma casota do cão, uma cama num plano mais elevado decorada de imagens diversas e com frases de ordem «como despachar um encalhado», «corrupção», «lei das ruas», «a casa», «o segredo», «amor»), um carro e um sofá são os elementos que sobressaem à primeira impressão. Tudo está ali, tudo está desordenadamente ordenado.
Em seguida, num movimento apressado, os actores entram e interagem com o cenário, aproximando‐se da boca de cena, um a um e dirigem‐se ao público: ‘Meus filhos... nova geração… sentados, adornados com ramos de suplicantes… eu de nome Édipo…’. Ao gosto clássico, a invocação no Prólogo, ainda que num ambiente diferente, situa a cidade (polis) e o que nela se passa: «Toda a cidade, como tu próprio notaste, se agita em estertor e não é capaz de erguer a cabeça acima deste abismo de desespero ensanguentado…». Desde logo, o espectador é levado para outro mundo, mas um mundo que está logo ali, mesmo à sua frente, onde ele é convidado a participar, porque é para ele que os actores se dirigem, olhos nos olhos, e lhes apresentam a cidade em que habitam. É invocado o auxílio ao ‘melhor dos mortais’, porque ‘é melhor governar com gente do que sem ela’. O caos está lançado.
Embora sejam muitos os momentos que mereceriam a nossa análise, destacamos o pai avarento que quer ver seus filhos casados com alguém de posses, mas, como era de esperar, os seus amores pertencem a outros donos e, noutro ponto, a oficina, uma verdadeira caracterização típica da sociedade portuguesa. Aqui, nesta oficina, não se trabalha de qualquer forma, pois o trabalho tem de ser limpo, as mãos não podem estar sujas com o óleo de motor, senão «como dar o aperto fraternal?». A oficina funciona, assim, como espelho de uma sociedade de aparências, onde «… falamos em português…», não existem manchas no chão e as roupas têm de estar limpas. Como se não bastasse, os funcionários só falam de férias e são confrontados com o patrão: «… férias? É só nisso que pensa…?».
Na verdade, a caracterização não poderia ser melhor, porque se temos um patronato que se preocupa com a aparência, temos também a classe trabalhadora a pensar em férias. Mas Vieira Mendes vai mais longe e coloca este ‘patrão’ a gabar‐se das suas qualidades, «… sou engenheiro, tenho um curso superior», e a rebaixar a classe operária «Esta juventude. Não sabem distinguir um Magritte de um Goya, um Beethoven de um Chostacovitch e ainda pedem férias. Se fosses meu filho…».
No final de todo o discurso, o patrão severo mostra ao público que «isto tudo não passa de máscaras de autoridade…», mais uma vez, a sociedade portuguesa por excelência, a sociedade que vive de aparências e se encosta a atitudes mais ou menos ditatoriais para disfarçar a pouca cultura que possui.
Acho que já vi isto em algum lugar!?!
Pedro Miguel Sousa
in Jornal Povo de Fafe (16-07-2010)