sexta-feira, 8 de abril de 2011

«Aqueles que um dia nos quiseram mal, se pensam que lhes vamos pagar com a mesma moeda, estão muito enganados. Não gastamos assim o nosso dinheiro!»


A sociedade tem destas coisas. Muitas das vezes, independentemente do posto ou estatuto, o indivíduo sente uma enorme vontade de se insurgir contra todos aqueles que de uma ou outra forma se lhes atravessaram pelo caminho, apenas com um único objectivo – afastar do seu caminho para conseguir o seu lugar, mesmo que para isso seja preciso ‘apunhalar pelas costas'. Ainda que o poder instalado seja o melhor auxílio para que estas manobras tenham sucesso, o certo é que ‘a mentira tem perna curta’ e ‘a verdade tarda, mas não falha’.
As comunidades mais pequenas, onde a ruralidade insiste em reinar em espíritos maléficos, são caracterizadas pelas frases conhecidas ‘toda a gente sabe a vida de toda a gente’ ou, porque a gabarolice é arma dos mais fracos, ‘o senhor fulano bateu-me com a mão nas costas’ e, ainda, ‘fui chamado ao gabinete do senhor cicraninho’. Eis uma imagem perfeita de um país atrasado, mas que se impõe ‘erecticamente’, pendurando num corpo semi-novo um fato e gravata.
A sociedade portuguesa começa a despertar consciências aos mais distintos níveis. Os boys continuam à sombra, os fulaninhos estatelados, mas os cicraninhos começam a ficar assombrados. O prior já não é o mais importante e o doutor o mais destacado, porque todos puderam crescer e a educação generalizada dita um rumo novo aos mesmos de sempre remediados.
Apesar de toda esta crise económica que vivemos, que leva à insistência em não recorrer a ajuda ainda que a fome esteja instalada, a crise pior é a falta de escrúpulos de uma sociedade que sempre viveu de aparências, em que os mais destacados se serviam da pouca ou nenhuma formação dos outros para lhes tolher os sentidos e motivar com umas palavras delicodoces.
Infeliz daquele que vive sobre as ordens dos outros, sem que estas sejam tomadas suas; infeliz daquele que se julga um deus, porque não passa de um pobre coitado; infeliz daquele que se julga superior, porque não é mais do que manipulado; infeliz daquele que usa a sua posição para mandar, porque um dia será julgado.
No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente já nos retratava esta mesma sociedade, utilizando o riso para a caracterizar, «ridendo castigat mores – a rir se castigam os costumes». Todas as personagens que se vão apresentando naquele cais de embarque pretendem partir na mais apetecível, a barca do purgatório, mas nem o padre, que se fazia acompanhar de «ûa moça», consegue tal viagem. É o parvo, aquele que dizia asneirada atrás de asneirada, o merecedor de tal lugar.
Por tudo isto, se Gil Vicente já dizia isto e, depois de tanto tempo, os costumes continuam inalteráveis, só uma frase se pode dizer: «Bem-aventurados sejam os pobres, porque deles é o reino dos céus».
Pedro Miguel Sousa, in Jornal Povo de Fafe (08-04-2011)